Edzita Sigoviva

Corpa-pote

 

 

TRECHO LIVRO MIGUILINS:

— Sonho acordado —

Miguilim agora em tudo queria reparar demais, lembrado. Pó, tabaco-rapé, de fumo que ela torrava, depois moía assim, repisando – a gente gostava às vezes de auxiliar a moer – o pó ela guardava na cornicha, de ponta de chifre de boi, com uma tampinha segura com tirinha de couro, dentro dela ela botava também uma fava de cumaru, para dar cheiro... [ROSA, 2001a, p. 75]

Lá em casa, na casa de Mãe, no interior, toda a água que vai para a geladeira faz uma grande viagem. A água de beber lá em Mãe é aparada da torneira da rua em uma barrica enorme que fica na área de serviço. Ela fica ali porque não se toma água sem ser dormida. Toda a água de beber é cuidada, mas a água que se tem mais cuidado é a água de chuva. É uma água doce, gostosa, alvinha. A gente guarda e bebe dela até mesmo o final do ano. No outro dia ou depois de amanhã, conforme a necessidade, a água é transferida para um pote, onde fica lá assentando algum pozinho. Toda essa água é temperada com duas ou três pedrinhas de cumaru que deixa um gosto bom na água. Nesse sonho há uma inversão de sentidos, uma função de olfato se transforma em uma imagem de paladar. Meu cumaru, Miguilim, é de sentir gosto e o seu é de botar cheiro. Toda essa água, a água do fundo dos potes de beber e do pote que está escorado no limoeiro do quintal e dele a gente coloca água para as galinhas, é a mais longínqua profundidade de mar que experimento.

— Silencia o humano furta-cor —