
Clarice Rito
Eu paisagem
Este fantasma de casa impresso na lateral do sobrado, sou eu. Uma hidrografia misteriosa a emergir pelas vigas, bordando musgos, sulcos e bolhas de tinta. Por vezes, derramo, rumo ao vento, ramos de matos esguios – atos de raízes secretas, atadas em mil passados, se esgueirando por entre frestas. Quando em festa cálida, mas calada, sou o chuvisco vespertino, doce e leve, que surpreende hidrantes; o riso salivado de bebê que mira desfoques em trânsito. Em solavanco, sou um espanto espalmado espelho ao meio-fio, com estalidos entalados nas engrenagens de craqueluras. Sou eu haste ríspida crispada em diagonal na goela do boeiro; o som macio e agudo de gotejos intermitentes; parede pálida de poros fuliginosos, que vertem uma laminha cinza e espessa, quando estronda o sol. Sou eu superfície larga descascada, de tijolo aparente, quando minhas torrentes forjam nudez desprecavida. Tenho tatuados na derme mapas de sonhos mofados. Sou corpo inerte sob as sombras de esteios, arames enferrujados e cabos elétricos, estirados ante o céu da rua deserta. Sou eu ranhuras persistindo no muro chapiscado, num relinchar inaudível, e também a dentição de cacos de vidro sobre ele. Sou eu o vazamento de dutos encharcados de águas turvas, frente a janelas abertas e outras cegadas por cimento. Quando mansa, broto o olhar da poça que mina de meu umbigo e suspiro para me inspirar, tornar a tomar suave o entorno, deglutir de ponta-cabeça minúsculos tragos do mundo; dependurada sobre os canais venosos que recortam o asfalto. Mas, bruta, também sou eu buraco plantado entre fragmentos gordos de concreto, calçada atravessada por aformigas, tubos plásticos esturricados e vergalhões. Cabeleira em turbilhão junto a folhas secas e tropeços em encardidas pedras portuguesas. Sou eu esta que vê, chora e enche a boca com um bocado de água filtrada e, ainda fervida, pra regar a ferida; antes de gritar.