Ara Nogueira

Travessia (ou sobre cartografias líquidas)

 

Contornar a cidade é também contornar a si mesmo. É andar em linhas que se atravessam, se cruzam e se costuram. Para onde vamos? Não sabemos, marchamos a esmo pelo chão do asfalto quente em busca de água, qualquer rastro dela. Um vestígio. Uma marca. Tracei uma estratégia e pus meu corpo a seu serviço. Decidi registrar todo e qualquer sinal dela deixados nas ruas. Caminhar atrás de agua dá sede e também resseca as ideias. Qual seu custo? Agua é muito cara muito cara muito cara muito cara e não é muito bem distribuída. Vomito esse fluido engasgado na garganta enquanto risco o chão, marco outro contorno, podia ser um rio, mas é uma poça – de agua impura.

A cidade não está posta para todos.

O percurso que eu traço vai da periferia ao mar. Do inicio da margem. Na beira. Agua custa caro. Muito caro. Custa caro ter sede. E é custoso ser um corpo feminino à deriva na cidade. Estou suando. Minhas mãos estão úmidas. Cada pausa para contornar poças é uma travessia para dentro e para fora. Mergulho nesse chão de concreto. A cidade me engole. Estou vulnerável aos olhares alheios. Nunca frágil. Escorro pelos cantos como escorrem os líquidos pelas minhas pernas. O gozo, a agua, o sangue. Cada contato com poças é como demarcar o caminho de chegada para lugar nenhum. Percebo que me falta tempo. Faço uma escolha. Retorno. Não chegar ao rio também é atravessar essas aguas. Aguas invisíveis, fluidas, recursos hídricos invisíveis abaixo dos meus pés. Essa cidade tem tanta agua. Por que falta? Quando a cidade sufoca as águas para onde elas escorrem? Como quem não tem escolha, a agua transborda. A cidade tem agua, mas nega. Nega com tanta força que violenta sua fonte mais pura.

Tento desviar sem violência, impossível. Tenho raiva e meu corpo se movimenta sem controle, como as turbulentas aguas que o habitam. Corpo. Rio. Onde fica o Rio Maracanã? Ando através da cidade sem nenhum propósito. O rio que busco sou eu. Agora um também corpo-rio. Sou atraída por rastros de aguas paradas. Sempre as mesmas. O centro da cidade é um lugar quente e também sombrio. Há de se ter muito jogo de cintura para nadar nessas aguas. Poças não tem correntezas. Mas internamente uma força as impulsiona para frente. Experimento variados estados, do solido ao gasoso. A agua se regenera.

Hoje não persegui marcas d’agua. Quis capturar coisas, mas acabei capturada por elas. Registrar o rio em objetos espalhados e/ou deixados pela cidade. No dia que abandono a ideia de perseguir um rio sou levada a um parque que possui vasta quantidade de agua. Na beira da pequena orla avisto: é o rio quem cerca e contorna toda a cidade. Mas é a cidade que avança, não o rio. A cidade que aterra. A cidade que tenta conter a força de suas águas. A cidade nega o movimento do rio. A cidade alaga. A cidade entope. A cidade produz a sujeira e distribui no mar. A cidade não deixa a agua escorrer-correr-avançar. Num vai e vem abusivo violenta suas fontes potáveis. O rio é essa puta com nome de mulher que homem violenta. Estupra. E a manifestação dessa violência produz esgoto. E não satisfeita no seu gozo, a cidade empurra goela abaixo essa porra imunda. E cerceia seus movimentos de partida, de chegada.

 

 

Dados dessa cartografia:

Corpo feminino – Desvios/Atalhos
(opressões)
Custa mais caro ter sede quando não se tem 
dinheiro para beber água;
ou ir ao mar;
ou ver o rio.
o rio transita por baixo ainda que invisível aos olhos;