Fartura
Videoperformance
Sou neta de merendeira escolar. Vó Léa alimentou muitas crianças com suas mãos, essas também sustentavam outros 7 em casa. Nascida numa família de matriarca comandada por vovó, a cozinha sempre foi um local de desmonte do poderio masculino, e de reunião das forças diárias que o cotidiano opressor de trabalho impôs às suas mãos e pernas. Minha vó matava. Matava a fome dos filhos, matava a fome dos filhos de outras filhos e com isso sustentou em pé uma vida de luta braba. Aqui ainda hoje, nestas terras, morre-se de roubo, não de fome. Por favor, não me entendam mal, aqui também a morte por fome e desnutrição é o mais infame dos crimes desumanitários que se perpetua. Morre-se de roubo porque até a comida é roubada. O direito à alimentação, e mais, o direito à alimentação saudável de quem ergue as bases desse Brasil é um assassinato estrutural que se perpetua.
Procuro ficcionalizar a imagem do vírus que domina nosso imaginário nos tempos atuais para redistribuir e conjurar, pelas mãos e pela boca, a morte dos que ainda não foram, seja por privilégio aliado à intolerância, por ocupação indevida e/ou por exercício vivo necropolítico da herança colonial. Trata-se de um ritual de evocação por ressonância algorítmica através da linguagem audiovisual para colidir com essas outras forças destrutivas, num embate vindo de nossas ancestres bruxas e deusas. A deusa da Fartura, transcriação da Afrodite, cujo amor, sexualidade e beleza comunicam sua força, é reavivada aqui através de uma deusa do corpo farto, esgotada até a ponta dos mamilos, de todos assassinatos que estamos sendo testemunhas desde o antro do Planalto Brasileiro. Estamos Fartes!